Desde 01 de Março de 2022

Rachel de Queiroz

Meu encontro com Rachel de Queiroz Vânia Moreira Diniz

Ela morreu! Eu a conheci muito pequenina na casa de meu avô que era também escritor e cearense. Meu avô, meu ídolo e guru. Como todos sabem sua vida de escritora, sendo a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras, prefiro falar da mulher extraordinária que conheci tão de perto.

Há algum tempo quando esteve em Brasília, eu mandei uma carta para Raquel e foi publicado no Correio brasiliense um artigo que fiz sobre ela. Imediatamente ela me procurou no Centro de Treinamento de Línguas que eu fundei e dirigi.

Quando a vi, o rosto redondo e extraordinariamente simpático e a reconheci a emoção transbordou minha alma. Falou-me de meu avô, convidou-me a escrever um livro sobre ele fazer um discurso para seus velhos amigos ele, sob sua orientação, discurso este que está publicado na Usina de letras e pediu-me para ler os meus textos.

Isso foi apenas um preâmbulo para recordar essa mulher que tanto fez pela literatura escrevendo aos quinze anos seu primeiro romance.

Não posso esquecer daquele dia, nunca esquecerei realmente e prefiro na emoção que me domina transcrever não só artigo publicado no Correio Brasiliense bem como o meu encontro com essa mulher maravilhosa.

Carta Aberta

Preito de admiração à Raquel de Queiroz
Carta dirigida à escritora
publicada no Correio Brasiliense

Eu era ainda pequena quando, na casa de meu avô, situada na exuberante Gávea, uma casa linda e grande que a memória da minha infância guardou, falava-se sobre você, enaltecendo seus dons de mulher e de escritora.

Você sabe que nada como a primeira idade para marcar a nossa vida.

Admirava meu avô. Acho que o conheceu. Também escritor, também inteligente, arejado e cearense, o grande Monte Arraes impressionava pela figura humana e imensa por dentro e por fora. Ele centralizava um pequeno mundo literário dentro de sua própria residência, e eu pequena, começava já a observar com olhos curiosos o universo do meu avô.

Soube que há menos de 6 meses a Universidade Nacional de Brasília ia republicar um dos seus livros e fiquei impressionada como nós, sua própria família, ficamos tão à parte da vida de um escritor talentoso que dedicou a existência, ao estudo, ao trabalho e aos seus próprios livros.

Mas retornando à você Rachel, o que quero dizer é que a conheço desde há muito, quando presenciava a admiração profunda pela sua vida e pela sua pessoa. Quando nasci já a aura de uma nova época surgia. Não como hoje. Mas já era a evolução da mulher que, por índole e temperamento, absorvi até exagerando. Então quando ouvia falar sobre você, mulher que, numa época em que não se compreendia de forma total a sua emancipação e numa cidade em que os preconceitos são indeléveis, conseguia ser emancipada e pairar muito acima dos preconceitos, meu coração batia com força, querendo conhecê-la, almejando dizer o quanto a admirava e sentindo no meu pequeno coração infantil o orgulho de ser mulher.

Muitas vezes, Rachel, perguntava com extremo nervosismo a meu avô quem era você. E ele, sorriso esparso no rosto moreno e simpático, dizia no seu modo inteligente de falar.

— É a maior e mais capacitada escritora brasileira.

Vovô sabia que meu sonho era escrever e me provocava através do seu talento de fibra nordestina que evidentemente eu nunca viria a ter. Não obstante, ele acreditava em mim e seu estímulo vinha através da grande Rachel de Queiroz.

Através da minha vida, comecei a ler sobre você, e adolescente ainda, devorava seus livros que eu considerava extremamente absorventes. Procurava em jornais e revistas declarações suas e não perdia, desde muito criança, todas as suas entrevistas.

Isso tudo aconteceu no Rio, minha querida cidade natal. Agora depois de mudar para Brasília, há alguns anos, soube com excitamento e ansiedade que você estaria aqui, dia 25.

Como gostaria de vê-la, Rachel! De novo os olhos da memória, começam a me lembrar fatos que me trazem a sua excepcional figura e me lembram o estímulo ao nosso sexo, ao nosso valor e a nossa capacidade. Você também me traz saudades do meu avô e me leva um pouco a ele através do que eu ouvia nas palavras elogiosas dirigidas à escritora Rachel de Queiroz.

Rachel de Queiroz, cearense corajosa e inteligente, mulher valorosa, escritora dinâmica, pessoa humana emancipada, primeira brasileira a pisar a Academia Brasileira de Letras” Mulher que foi para mim estímulo, admiração e orgulho e que hoje chegando à capital da república, me faz desejar vê-la, falar-lhe e demonstrar-lhe no carinho e desinibição da minha geração, o orgulho imenso que raras mulheres emancipadas de sua geração nos inspira.

Meu encontro com Rachel de Queiroz

Eu estava sentada à minha mesa trabalhando. Levantei a cabeça e ao olhar para fora, dei com um familiar vulto, que eu conhecia, através de fotografias e mais ainda por reminiscências da minha infância. Parei. Meu coração batia aceleradamente, e eu não podia tirar os olhos daquela mulher que entrava no meu curso, acompanhada de uma outra senhora.

Desinibida por natureza e temperamento, expansiva ao extremo, fiquei simplesmente parada, sem conseguir dizer uma palavra. A emoção, sem dúvida, dominava-me. E eu fazia uma força imensa para ultrapassar esse bloqueio.

Mas como não ficar assim, se na minha direção vinha Rachel de Queiroz a notável escritora cearense? Como não ficar assim, se ela, naquele momento, só poderia estar entrando ali, em resposta à minha carta?

A vida é feita de poucos momentos intensamente alegres e marcantes. Estes compensam a tristeza e a monotonia do dia a dia. Estava ali, um daqueles instantes, em toda a sua proporção.

Sempre acompanhada da amiga, aproximou-se de mim. É uma mulher de um incrível carisma. Jamais, se não soubéssemos a sua idade, lhe daríamos a sua idade. Além disso, esse carisma é evidente. Apenas a sua presença basta para isso, porque vem de dentro dela, uma força tão grande que somos obrigados a olhá-la, admirando-a.
A pergunta chegou simples e direta:
– Jovem, você é a Vânia?
Consegui dominar-me para responder em seguida.
– Sim, sou eu.
– Eu já sabia. Você possui os traços fortes de seu avô. Sabe quem eu sou?
– Como poderia não saber? Como poderia deixar de saber que você é a Rachel de Queiroz

Ela sorriu. Um sincero e manso sorriso, que vinha de dentro e que iluminou o seu simpático rosto redondo.
Há pessoas para quem o sorriso é apenas uma máscara ou um rictus. Mas para essa mulher ele continha vibração, alegria e forte transmissão de carinho.
O sorriso deveria realmente contagiar porque enobrece o ser humano tornando-nos fundamentalmente diversos da irracionalidade e elevando-nos a uma condição de sensibilidade e compreensão.

Eu ainda estava sob efeito da emoção. Considero-me emotiva, mas também senhora de mim e é nessas horas que compreendemos o quanto somos vulneráveis.
Rachel circunvagueou o olhar pela minha sala e falou:
– Bonita, a sua sala. É uma linda escola? De línguas?
– Sim, é uma escola de língua portuguesa e estrangeira.
– É sua?
– É. Resolvei montá-la de repente, mas com muita vontade.
Ela fitou-me com simpatia e a seguir disse lentamente, com o olhar perdido em algo além.
– Sim, você é a neta do Monte Arraes. Ele possuía essa raça e determinação.

Não concordei. Nunca tive a pretensão de ter a fibra de meu avô, mas mesmo assim agradecia-lhe, ter me comparado a esse grande homem.
Que estranho caminho percorre a nossa psiquê!

Olhando para a grande escritora, conversando com ela, parecia-me, de repente, que eu já a conhecia há longo tempo. E no entanto, pessoas há, que a gente conhece anos e anos, dando a impressão de tê-las visto apenas ontem.

A nossa conversa foi curta, mas intensa.
Ela ia viajar em seguida e me perguntou se tinha alguma coisa escrita para lhe mostrar. E então ela me disse algo que conseguiu de novo me emocionar:
-Se avô sempre me dizia que tinha uma neta do qual se orgulhava e que era escritora. Já pensou em escrever um livro sobre seu avô?

  • Sim, tenho pensado muito. Prometi a ele que o faria.
    – Escreva, então. Arranje tempo. Transforme durante algumas horas, a sua mesa de empresária em mesa de escritora. Nem que para isso, você tenha que trabalhar muito mais. Chegue mais cedo e saia mais tarde. Escreva um livro sobre seu avô e eu promoverei esse livro. Mas antes gostaria que fizesse uma palestra sobre ele. Entraremos em contato.

Não consegui responder. Nunca, em tão pouco espaço de tempo, fiquei durante tantas vezes engasgada pela emoção.

Compreendi, então, que em absoluto eu não era uma pessoa objetiva. Sempre me achei extremamente sensível, mas também tinha consciência do meu domínio psicológico e de repente concluía que era frágil e indefesa. Seria mesmo? Ou teria sido apenas uma nova e forte experiência a mexer com minha estrutura psíquica?

Filha de um estudioso da psiquiatria, acostumada a lidar dentro da casa de meus pais, com esses médicos que pesquisam e exageram a reação das pessoas até nos traços da fisionomia, eu tentava me analisar em vão, em uma questão de segundos.

Rachel notou o que se passava comigo e passando a mão pelos meus cabelos, como se eu fosse apenas uma criança, disse tranquilamente:
– Vânia, nem todos os dias, o escritor tem vontade de escrever, como também qualquer profissional, não é uniforme na sua vontade de produzir. Mas nesses dias, pesquise sobre seu livro, colete dados, mas não deixe, de uma forma ou de outra, de trabalhar nele diariamente. Não daria um conselho para você se tornar uma escritora se já não o fosse por estrutura e hereditariedade. É dura a vida de escritor. Mas lute Vânia e eu a promoverei. Eu lhe prometo.
Fazendo uma pausa ela novamente tocou em meus cabelos com grande suavidade e singelamente, como se fosse alguém apenas anônima e comum disse-me:
– Adorei a sua carta. Ela me arrancou lágrimas. Lembrei-me muito de seu avô e olhando-a, vejo que você, se parece imensamente com a meiguice de suas palavras.

Fui sincera quando respondi:
– Pensei que não fosse ter tempo para me responder e muito menos me procurar.

Rachel olhou-me e nesse olhar vinha muita ternura quando falou.
– Você é uma escritora, deixaria de responder uma carta como a sua? Você, minha querida, pede apenas para ver-me, nada mais. Não é incrível? Não é uma homenagem que nos traz lágrimas?

Há momentos que valem por si só. Que se impõem. Que não precisam de palavras. Que valerão enquanto a gente viver. Que compensam outras tristezas. Que servirá de estímulo pela vida afora. Que trará sempre reminiscências boas. E esse era um desses momentos da minha vida.

Acostumada a ouvir falar dessa mulher, quando eu era apenas uma criança, admirando seu valor e inteligência, primeiro através de comentários na casa de meu avô e em seguida por minha própria pesquisa, era muito importante o estímulo espontâneo que me vinha através dela.

Rachel pareceu-me uma mulher extremamente suave e amiga, e hoje, quando parece que a doçura saiu de moda, conviver com essa suavidade era-me valioso.

A escritora ainda conversou alguns minutos comigo. Estimulando-me com energia e sinceridade, consegui entender que ela tinha o firme propósito de ajudar-me.

Despediu-se de mim, dando-me seu telefone no Rio e pedindo que eu desse notícias. Segurando meu rosto com ambas as mãos e fitando-me intensamente beijou-me com intenso carinho e acompanhada da amiga, testemunha silenciosa da nossa conversa, e que também se despedira, encaminhou-se para a porta, abriu-a e por um momento hesitou. Depois votando-se lentamente, perguntou:
– Vânia, você tem alguma religião?
Olhei-a, estranhando a pergunta inusitada, mas respondi:
– Eu acredito em Deus.
Doce e envolvente sorriso, iluminou seu rosto expressivo e amigo ao me falar sinceramente:
– Sinto muito. Eu não acredito, mas seremos amigas mesmo assim.

E saiu, deixando-me perplexa, feliz, encantada e com lágrimas que eu não sabia explicar como, saiam de meus olhos, sem que eu conseguisse impedir.

Nesse momento pude avaliar que chorar mansamente é tão importante quanto sorrir porque ambos nos fazem humanos, ricos de sentimentos e verdadeiramente forte na nossa fragilidade. E fortes porque temos a coragem de expressar sem constrangimento nem fraqueza as nossas emoções.

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Uma resposta

  1. Vânia…
    Fiquei emocionadissimo com sua carta, mas, principalmente, com o relato de seu encontro com Raquel de Queirós e, sinceramente, também cheguei às lágrimas. O primeiro impulso, em sequência, foi de compartilhar tudo isso, no face. Porém, contive-me, ate ter autorização para tal…

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