Um Gesto de Paixão
Vânia Moreira Diniz
Nunca esquecerei de uma senhora que conheci há muitos anos. Foi uma das mulheres mais bonitas que conheci. Embora fosse idosa (já passava dos setenta anos), ficava admirada de seus extraordinários e belíssimos traços. Questão genética, claro. Sempre ficava pensando como deveria ter sido bonita na mocidade.
Eu era muito jovem e ficava deliciada ao ouvir suas esplêndidas histórias. Tocava piano maravilhosamente e mesmo tendo tanta gente moça por perto encantava pelo seu espírito singular, inteligência brilhante e o dom raro de fascinar as pessoas pelo natural vivacidade. Poderia ficar horas ouvindo-a sem me cansar e não raras vezes lhe pedi que repetisse os casos já sabidos. Havia tanta espontaneidade e graça em seu modo de relatar que era sempre como se o fizesse pela primeira vez.
Várias vezes a vi em Copacabana empurrando um carrinho de nenê que carregava em suas compras de legumes na feira (naquela época havia muitas feiras no meu querido Rio de Janeiro). E quem a visse simplesmente fazendo compras tão comuns não poderia imaginar que talento especial tinha para a música. Era uma artista e uma pessoa invulgar.
Nas tardes de domingo, ela costumava reunir uma turma gostosa (morava em Botafogo) para conversar, lanchar, jogar cartas descompromissadamente e cantarmos e tocarmos piano, violão e outros instrumentos. Era muito animado porque formávamos uma turma realmente musical já que meu irmão fazia parte de um conjunto e levava a bateria e os colegas. Fazíamos um verdadeiro show. E quem mais apreciava essas reuniões sedutoras éramos justamente nós mais jovens, que participávamos ativamente. Lá, ao som do instrumento preferido de Deborah (todos a chamavam pelo primeiro nome) que era o piano e acompanhada por todos nós, passávamos uma tarde e noite deliciosa. Havia pessoas com inclinações variadas desde escritores e músicos às ocupações mais prosaicas.
Certo dia que jamais me sairá da memória encontrando-a casualmente convidou-me a ir até sua casa. Estava deprimida e não poderia negar um pedido tão especial de Deborah num momento difícil. Na verdade, ela era amiga de minha avó, mas seu gênio saltitante e quase juvenil a aproximava dos amigos de seus netos. E a amei sempre e muito. Ela estava naqueles dias de tormento d’alma em que as recordações incomodam.
Falou-me então de seu marido e do quanto sentia saudades. E até isso ela fazia bem a ponto de conseguir que as pessoas quisessem ouvi-la. Perguntei-lhe como tinha sido seu remoto namoro, certa de que ia ouvir algo interessante o que realmente aconteceu. Dissertou-me então o fato que até hoje recordo e consigo rir agradavelmente de seu jeito suave e natural.
Na sua época as moças se casavam com rapazes escolhidos pela família. Assim fizeram com Deborah e ela sentia raiva daquele jovem bem mais velho e pelo qual não sentia nenhuma atração. Diversas vezes se revoltara dizendo claramente que jamais casaria com ele. Chorava de ódio pela sua presença indesejável. Uma manhã ele chegou em sua casa e a mãe pediu que ela levasse uma bandeja para servir-lhe o café. Depois de suplicar à mãe para não o fazer resolve obedecer compulsoriamente. Ao vê-lo ficava fora de si e sem querer deixou inadvertidamente a colherinha cair e o rapaz abaixou-se para apanhá-la. Ela contava com uma graça suprema que no momento que ele fez esse gesto de abaixar-se, algo aconteceu e ela apaixonou-se perdidamente por ele durante quarenta anos, ou seja, até Dr Geraldo morrer. Não sabia que fenômeno ocorrera, porém tudo o que ansiava daquele momento em diante era ficar ao lado dele para sempre.
Seguidamente lembro-me dessa excêntrica história que achei interessante e que já revelava em sua essência os efeitos de um gesto, uma palavra, um ato ou de um sorriso na psicologia das pessoas. Uma reação subjetiva, porém, profunda. Totalmente inexplicável como muita coisa que acontece em nossas vidas. E que transmitida por Deborah me comoveu sem, contudo, concluir nem por um momento que ela tivesse inventado. Todos sabiam como sua vida e personalidade eram ricas e que não precisariam de palavras que não fossem absolutamente verdadeiras. Aquilo me tocou num misto de hilaridade e deslumbramento.
Vânia Moreira Diniz
Conteúdo atualizado pela equipe Essenciar