Viajo no tempo e encontro, entre as minhas recordações, a imagem de muitos anos atrás. De um amigo. Alguém extremamente singular que entrou em minha vida, enriquecendo-a profundamente. Quando o conheci, fiquei impressionada pela figura humana cativante e inteligente, cujo carisma me seduziu. Não no sentido de paixão, não é isso. Mas na direção de um amor por um ser humano que possuía qualidades intrínsecas impressionantes.
Era paulista, mas havia percorrido o mundo inteiro. Embora extremamente jovem (24 anos), tinha uma maturidade, experiência e cultura como poucas vezes encontrei. Falava inglês magnificamente bem e, o que é mais importante, sabia transmitir; era um excelente professor. Ficamos logo amigos e, como estava fundando o Centro de Treinamento de Línguas, convidei-o para trabalhar comigo, o que ele prontamente aceitou.
Nos meses em que estivemos trabalhando juntos, nossa amizade se solidificou. Um dia, num dos raros intervalos em que podíamos descansar um pouco, Beto me contou a sua história. Com olhos marejados de lágrimas, relatou sua vida, dizendo que havia assumido o lado feminino como o mais forte de seus genes, o que, aliás, eu já sabia pela própria maneira discreta, porém natural, como se conduzia. Entendi que, apesar de tudo, ele tinha receios de incompreensões, mas logo procurei acalmá-lo:
— Beto, é sua vida. E você tem que saber o que quer. Ninguém tem o direito de concordar ou não. Tem que ser feliz como acha que deve.
— Na verdade, Vânia, por mais que estejamos emancipados, não é tão simples como você quer que eu entenda. Já sofri discriminação.
— Acho que não é bem isso. Tenho a impressão de que você se discrimina, e não entendo o porquê.
Nos pequenos intervalos do dia, tínhamos muitas conversas sobre assuntos variados e divagávamos, o que nos conduzia a uma interessante forma de repouso. O tempo só solidificava essa amizade que se tornava, ao mesmo tempo, vibrante e tranquila.
Era um amigo eficiente, prestativo e generoso na forma de se doar. Em diversas ocasiões, falou-me do quanto se sentia cansado por qualquer motivo. Estranhava a debilidade física de que tanto se queixava, porque era um rapaz forte e saudável.
Com o passar do tempo, percebia que Beto abria sua alma de uma forma completa e eu me sentia cada vez mais tocada pela riqueza de seu mundo interior. De sua vida particular, comentava muito por alto, e eu tinha a impressão de que ele queria ou precisava se abrir, mas esperava uma ocasião.
Foi numa tarde de sol esplendoroso, em que, apesar da agitação, eu comentava sobre a natureza maravilhosa, que Beto me disse, as lágrimas borbulhando:
— Tenho uma notícia triste para lhe dar, Vânia.
— Triste? Por quê?
— Tenho que voltar a morar em São Paulo.
— São Paulo? Mas como vamos fazer?
— Minha família está precisando que eu fique perto. Minha mãe queixa-se frequentemente, e acho que retornarei às minhas atividades antigas.
Olhei-o, não acreditando no que ele dissera. O Centro se desenvolvia maravilhosamente, e lá dentro um precisava do outro, inquestionavelmente.
— Sei que vai ser difícil, Vânia, mas eu preciso. Organizaremos tudo antes que eu vá embora, de um jeito que você não trabalhe demais.
— Não é disso que tenho medo, Beto. Preciso do seu apoio.
— Jamais sairia daqui se não fosse extremamente necessário. Um dia você vai compreender, ou pelo menos espero que me entenda. Tenho um carinho enorme por você. É por isso que estou indo. E não me pergunte mais nada.
Beto chorava muito e angustiadamente, e a emoção me dominava, principalmente porque eu não entendia o que podia ser tão grave.
O dia da sua partida foi muito doloroso, e choramos abraçados no aeroporto, à espera do seu voo, lamentando que as circunstâncias afastassem dois amigos incondicionais.
CONCLUSÃO
Dois meses depois, quando meu amigo veio visitar-me, fiquei admirada com o quanto estava magro. Era muito alto e havia, no rosto jovem, olheiras escuras que sobressaíam no rosto claro. Observei alguma coisa esquisita na forma convulsiva como chorou, abraçando-me. Imaginei que estivesse recordando as nossas realizações e convivência. Mesmo assim, fiquei assustada.
Em seu retorno para São Paulo, pedi-lhe que me dissesse se estava acontecendo alguma coisa, e ele respondeu tristemente:
— Dou minha palavra que não. Apenas, às vezes, a gente tem que fazer não o que nos dá maior prazer, mas o que é necessário.
Não deixávamos de falar ao telefone, mas havia dias em que mandava avisar das pequenas viagens que fazia. Um dia, quando me falou, senti uma tristeza tão grande que quase não disfarcei minha aflição, como se fosse um pressentimento. Beto me anunciou que teria que fazer uma viagem mais demorada, porém prometeu que telefonaria logo que chegasse.
— Se é demorada, por que não telefona de lá? Para onde vai?
— De lá não terei jeito de ligar. Vânia, mesmo para você, não posso dizer aonde vou. Na volta, falarei. É muito importante a sua amizade. Nunca esqueça isso! Nunca!
Achei estranho, mas, como meu amigo era uma pessoa peculiar, a única observação que guardei para mim mesma é que ele sempre fora diferente, exótico, e eu gostava dele exatamente como era. Mas, de certa forma, esses mistérios me incomodavam e me deixavam preocupada.
Foi numa noite tranquila que recebi um telefonema de um amigo íntimo de Beto. Era meu amigo também, pois viera muitas vezes a Brasília na época em que o rapaz morava aqui. Quando ouvi sua voz, percebi que algo tinha acontecido de sério e pedi:
— Por favor, Márcio, diga-me. Aconteceu alguma coisa?
Sua voz pareceu-me incrivelmente longe quando respondeu:
— Lamento, Vânia. Mas é uma notícia terrível.
A minha pausa nervosa e assustada fez com que ele parasse, chamando pelo meu nome, pensando que a ligação havia sido interrompida.
— É sobre o Beto. Sempre disse que você deveria saber do que estava acontecendo aqui.
— Meu Deus, por favor, fale logo!
— Ele… Ele estava muito mal. Sinto muito, Vânia. Beto morreu ontem.
Minha cabeça rodou vertiginosamente, e achei que estava tendo um pesadelo. Durante alguns segundos, que me pareceram intermináveis, tudo ficou em silêncio.
— Mas como? — perguntei fracamente. — Sofreu um acidente?
— Não, amiga. Ele estava com AIDS e foi disso que ele morreu.
Agora tudo fazia sentido. Muitas horas depois, quando pude pensar em alguma coisa, entendi todo o drama que ele tantas vezes quis me confessar. Como não percebera? E por que não me dissera? Ou pedira a alguém para me falar? Esperara morrer? Depois, conversando com sua família, disseram que ele pretendia se afastar aos poucos, até conseguir que talvez sua imagem ficasse mais longe e, quando eu soubesse do fato consumado, a dor seria amenizada.
Mesmo assim, jamais entendi como nunca percebera nada. Nem mesmo quando viera aqui tão debilitado. E esse amigo, tão especial em minha vida, ficou em meu coração como uma doce e exótica lembrança, como era seu próprio temperamento. Mas nunca me conformei de não ter podido lhe dar o conforto de minha amizade em momentos tão dolorosos.
Vânia Moreira Diniz
A história é verídica, só troquei os nomes dos personagens para preservar suas indentidades
Conteúdo atualizado pela equipe Essenciar