Hoje acordando e ainda meio sonolenta senti uma estranha sensação. Meu corpo estava descansado, mas uma agitação tomava conta de mim como se tivesse algo muito sério para resolver. Lembrei-me então que era aniversário de morte de um homem que conheci aqui em Brasília e que tinha por mim um carinho de pai. Ele e dona Ramona foram meus vizinhos e em muitos episódios transbordaram minha vida de ternura. (Ela ainda é).
A família é muito especial e todos foram e são importantes em minha caminhada. Vou falar especialmente dele justamente por causa da data já mencionada.
Era um homem singular. Paraguaio de nascimento com um temperamento forte e explosivo, não media palavras nem argumentos quando queria expressar a sua “rude” sinceridade. E rude, apenas porque não era lapidada já que na verdade era uma pedra preciosa. Muitas vezes quando queria me controlar como se fosse meu pai, expressava esse carinho de maneira tão exótica, que eu me assustava. Mas não concebia a idéia de passar um dia sem me ver. E Dona Ramona ria da maneira pela qual ele queria dirigir os acontecimentos que no seu entender poderiam ser-me nocivos.
Em diversas ocasiões quando conversávamos em família, porque na verdade, passei a pertencer a ela de uma maneira profunda e completa, contava-me sua vida, e todos as lutas que tivera para sobreviver. Eu apreciava aquele contador de histórias, embora muitas vezes Dona Ramona tivesse lhe dito:
-Para de falar sobre isso. A menina já deve estar enjoada de lhe escutar.
Eu afirmava tranquilamente que me sentia bem ouvindo, o que era a mais absoluta verdade. Sabendo quão pouco meu velho amigo havia estudado, e observando suas tiradas por vezes espirituosas, divertia-me muito, com a naturalidade com que era capaz de dizer qualquer palavra mais “insultuosa” à própria filha, sem se alterar.
O que toda a família e os amigos notavam, era que comigo ele tinha um modo particular de se dirigir, apesar de tudo. Eu tinha um imenso carinho por aquele homem aparentemente grosseiro, mas cujo coração eu aprendera a conhecer e a amar. E que sem dúvida alguma, e muitas vezes, me fizera papel de pai.
Lembro-me que à noite recolhido em seu quarto, gostava de ficar sozinho meditando, e ninguém, nem a mulher e nem a filha tinham licença para entrar. A única que privava dessa especial concessão era eu. Muitas vezes indo lá para desejar Boa noite, batia levemente em seu quarto enquanto ele respondia:
– Entre minha filha.
Sentava-me então em uma poltrona perto de sua cama, e ele me perguntava e queria saber os acontecimentos todos do dia, aconselhando ou aprovando o que eu relatara, porém, continuamente mostrando seu interesse. Quando Dona Ramona precisava dele nessas primeiras horas da noite, sempre solicitava que eu fosse a intermediária.
Hoje comentamos isso com nostalgia porque sua ausência faz-nos rememorar muitos fatos vividos com intensidade. E o que nunca esqueço, foi o dia em que atravessando a rua com a mulher, precipitou-se e foi atropelado. Foi uma fase difícil em que seu rosto machucado e com ossos quebrados, exigiam da família paciência e dedicação. Estive sempre a seu lado, procurando ou pelo menos tentando suavizar aqueles dias difíceis, e dar a família uma força que sozinhos teria sido mais complexo.
Quando começou a comer alguma coisa, só podia tomar sopa e assim mesmo bem lentamente, no copo, porque uma colher aumentaria sobremaneira suas dores musculares e faciais. Mas negou-se peremptoriamente a fazê-lo. Dizia ele que não era criança para tomar sopa dessa maneira, e que não o faria. Olhei-o pensando um jeito de convencê-lo e via na atitude de Dona Ramona um pedido de ajuda.
Falei-lhe então:
-Eu adoro tomar sopa em copo. Podemos fazer isso juntos!
-Não acredito nisso. Nunca vi você fazer uma coisa dessas! Não é do seu estilo!
-É, normalmente não faço. Mas acho que é diferente. Se tivesse uma companhia eu o faria.
O meu amigo observou-me gemendo com o sorriso que instintivamente lhe contraiu os lábios ainda machucados, e falou devagar para não aumentar a contração:
Não sei se você está falando a verdade, mas vai ser divertido. Aceito!
Minha mãe “substituta” e Maria Célia, sua filha, riram sinceramente aliviadas. E desde aí até sua completa recuperação eu tomava deliciosas sopas, absorvendo devagarzinho no copo, ao compasso do meu anfitrião e até divertida por uma prática que nunca exercitara.
Hoje é seu aniversário de morte. Morreu muito depois do acidente minado por aquela doença que costuma debilitar cada parte do corpo enfermo: Câncer.
Até o fim foi para mim um velho amigo sempre presente e a seu modo solícito e carinhoso, realçando e enriquecendo a minha vida e tentando me transmitir um pouco de sua experiência, força e resistência nas intempéries que ainda surgiriam.
Vânia Moreiras Diniz