Acho que nenhuma fisionomia me impressionou tanto quanto a de meu pai. Tinha traços marcantes e os olhos azuis brilhavam imensos sempre revelando o que sentia interiormente. Eram os verdadeiros espelhos de sua alma. Sabíamos perfeitamente, meus irmãos e eu, o exato momento que podíamos conversar descontraidamente com ele ou aquele que seria perigoso fazê-lo. A não ser que fôssemos portadores de alguma notícia realmente esplendorosa.
Era advogado e conferencista. Essa profissão naquele homem especialmente inteligente, sensível, impetuoso e radicalmente reto e convicto me fascinavam. Poderia ficar horas ouvindo-o e apreciando o dom de sua palavra fácil e sedutora. Mas claro, havia oportunidades em que nossas personalidades se esbarravam e minha mãe costumava dizer que entrávamos em conflito porque éramos parecidos de temperamento.
Escrevia magistralmente e suas palavras que eu ouvi diversas vezes em conferência e que explodiam ao som de seu timbre vigoroso me entusiasmavam e ele me cativava cada vez mais como todas as pessoas que o conheciam pela sua extraordinária capacidade.
Tinha idéias arejadas e espírito aberto embora fosse totalmente exigente em seus conceitos e idéias. Jamais me proibiu e até estimulava meus vestidos modernos, decotados e curtos, namoros e distrações, mas jamais se conformou com as peças de teatro que eu queria encenar. Eram brigas constantes e inócuas para mim porque sabia que sendo menor teria que obedecer, e isso muitas vezes me deixava um sabor de mágoa.
A vida jamais foi monótona tendo como pai aquele homem tão vibrante, seguro e maravilhosamente imprevisível. Suas gargalhadas ressoavam sempre extremamente agradáveis, mas o contraste era surpreendente. Realmente era uma pessoa fascinante pelos antagonismos: Doce e firme, sensível e arrebatado, compreensivo e por vezes intolerante, possuía como principal atributo além da inteligência brilhante e da cultura invulgar a vontade inabalável de ajudar a quem se lhe aproximasse.
Nunca esqueço uma das conversas que tive com ele dentre muitas e que me deslumbrava, embora seus momentos de exuberância nervosa me deixassem tensa e preocupada. Estávamos almoçando juntos como várias vezes acontecia num restaurante de Copacabana no meu querido Rio de Janeiro. Eu era apenas uma garotinha de mais ou menos 13 anos, mas adorava trocar idéias com ele. Havíamos perdido há pouco meu irmãozinho de cinco anos, seu filho e estávamos todos muito abalados. Nesse período vi que ele era o esteio da minha família em termos de fortaleza e entendimento dos momentos dolorosos da vida. Além da alegria que procurava impregnar à sua volta estava sempre pronto para um momento difícil e tempestuoso. Perguntei-lhe se voltasse no tempo como seria sua vida. E se ele deixaria de fazer ou mudaria alguma coisa.
Olhou-me fixando-me seus extraordinários olhos azuis e disse sem vacilar:
_ não, filha, não mudaria nada. Faria exatamente a mesma coisa. Daria os mesmos passos, apenas com mais experiência. Não me arrependi de nada do que fiz até hoje. Ninguém evita sofrimentos tentando mudar seu caminho, Vânia. Se não for de uma forma será de outra. Mas o sofrimento existe e teremos que enfrentá-los da melhor maneira tentando achar o modo mais adequado para vencê-los na hora certa. E teremos muitas vezes dias nebulosos e tristes. Assim como passaremos por momentos de felicidade indescritível. Isso se chama viver.
Não pude responder por que as lágrimas me apertavam a garganta e a admiração interceptava minhas palavras. Mas essas conversas difíceis e ainda prematuras estão servindo de lição e força nas horas sérias e aflitivas, de estímulo e acolhedora lembrança nos alegres e ruidosos momentos de felicidade luminosa.
Vânia Moreira Diniz