Naquele dia sobressaltado, tal como um viajante de navio por ilhas inexistentes, tal miserando da face desfigurada pela carga de todos os martírios, um penitente crucificado de gritos inauditos com a culpa alheia e o tumulto da humanidade, um peregrino esboroado aos estilhaços de sentimentos com todas as revoltas desmedidas de pedra muda pisada e que sofria pelo mundo inteiro e me dando por bem pago como pato saco de pancada, um fantoche em que a vida se faz emudecida e vazia, um farrapo humano farto da agonia dos meus dias rumorosos e sem um gesto de piedade ou aceno que apaziguasse minha via crucis, eis que ela surge me trazendo a rosa da primavera com um desejo inaugural de vida a quem amou demais além da conta de todos os dias. E eu vi seus grandes olhos abertos quando a sorte cintilou em toda parte apagando todas as nódoas do passado e todos os desesperos das noites insones. E o seu riso largo e sonoro me encantou como quem embalado pela sonata mais envolvente. E a sua boca rubra da voz apaixonante me ensinou ali a capacidade de superar as mágoas e desapontamentos, o discernimento do perdão sob quaisquer condições, o de sorrir ao errar o caminho e ter de voltar, e de falar brando nos momentos iminentes e nas revelações das adversidades e noites de sono. E ela clarividente tornou-se o beijo ardente que instaurou luz no meu dia. E com seu jeito manso ensinou-me a enxergar além dos atributos físicos e fui levado por suas mãos suaves e inquietas para longe do passado. E nelas recolhi os gerânios ofertados por sua generosidade, para juntá-las às minhas desamparadas inventando à flor o orvalho. E dela fez-se o amor que nasce e renasce em meus poemas a devolver o paraíso roubado e a inocência perdida.
Luiz Alberto Machado
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CANTILENA
Ao prever o amor afinal
Em meu peito desabrochou
Toda gula da sedução
Toda opção na avidez do querer
Quando o truque do amor dominou
Foi capaz de ter emoção
Assustando meu coração
Sem ter razão pra se defender
Sacudiu a vida em mim
Coloriu como a um jardim
Foi depressa foi sem pena
Rebuscou na cantilena
Toda fúria do que quis
Não previu todo embaraço
Veio com estardalhaço
Pra me fazer feliz
Tão aguda, tão insana
Percebi que essa fulana
Era a deusa do meu sim
Luiz Alberto Machado
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