MEU ENCONTRO COM A DOR
Vânia Moreira Diniz
Acordei, no quarto ainda escuro e olhei instintivamente para o lustre azul que continha um elegante contorno de desenho em alto relevo. Lembro-me que sempre acontecia isso quando acordava. Gostava de apreciá-lo e pensar nas várias atividades do dia. Mas aquele era especial. Estava fazendo doze anos e achava que era dona absoluta do mundo. Tinha o conceito que essa idade era o marco de uma vida adulta. E tudo nessa época me sorria. Tinha tido algumas tristezas na minha infância com a saúde de um primo querido, mas parece que os acontecimentos se encaminhavam agora satisfatoriamente. Era feliz com tudo que encerrava minha vida.
Meu pai bateu de leve e entrou com muitos presentes. Olhei-o sempre me impressionando com a cor de seus olhos imensos cuja expressão todo mundo dizia que se parecia tanto com os meus. Às vezes ficava no espelho a questionar-me e via um pouco deles também. Logo foi me entregando uma pequena caixa que continha um relógio de ouro extremamente delicado com a pulseira escrava que eu tanto gostara e que agora olhava encantada. Os outros presentes eu veria depois, mas aquele era o meu preferido. Adorava relógios, uma mania que carrego até hoje.
Minha vida era divertida. Gostava imensamente de ler e escrevia compulsivamente, invariavelmente em todas as oportunidades. Muitas vezes, em meio a certas brincadeiras infantis quando percebiam que eu desaparecera me encontravam no escritório de meu pai ou no meu quarto escrevendo. Dirigia um pequeno jornalzinho do colégio e achava que era a própria redatora. Mas também gostava imensamente de me divertir, sair com as colegas, viajar, ir ao cinema, patinar, praticar esportes, frequentar de maneira exagerada lanchonetes e principalmente ir ao teatro. Sempre adorei teatro e naquela época fazia parte, acho, do meu contexto de vida. A praia para mim além de tudo era uma fuga de qualquer coisa que eu não compreendesse ou não gostasse. Muitas vezes, foram me localizar depois de um aborrecimento qualquer deitada na areia da praia, perto de minha casa… O sol tinha uma estranha magia para mim e também essa natureza esplendorosa que eu seguidamente amei. Gostava de admirar o céu enquanto estava deitada em frente ao mar e sentir as águas com as ondas imensas que por vezes geladas molhavam meus pés.
Foi assim no meio de uma vida ativa e buliçosa que vi meus pais perceberem que meu irmãozinho de três anos estava com as pálpebras inchadas. Eu também achei. Ele era muito lindo. Loiro, com enormes olhos verdes azulados, os traços bem delineados no rosto muito claro era uma imagem de quase perfeição. Além disso, e em muitas conversas intermináveis que mantinha com ele dava para verificar com facilidade que sua inteligência estava extremamente acima de uma criança de sua idade. Era muitíssimo agarrado comigo e mantínhamos um estreito relacionamento apesar da diferença de idade. Muitas vezes iria chorar escondido enquanto procurava disfarçar as lágrimas na sua frente. As perguntas que ele fazia me deixava engasgada e como era apenas uma menina começando a adolescência ficava em dúvida quanto ao que poderia lhe dizer.
Foi levado ao médico da família. Dr. Odilon, figura impressionante que estará sempre comigo. Desde pequena acostumara-me a vê-lo e aquele homem essencialmente humano e meigo jamais foi um médico para mim. Era um pai em todos os momentos. Um segundo e maravilhoso pai.
Estava estudando no escritório quando vi que o Dr. Odilon entrara e acercou-se de mim beijando-me e passando a mão em meus cabelos enquanto olhava com interesse o caderno no qual eu parecia estar tão concentrada.
Está estudando ou escrevendo?
Sorri porque sabia o quanto ele me conhecia.
Estudando.
Logo vi. Quando você escreve ou lê não vê ninguém.
Ao senhor eu veria.
Contemplou-me com os olhos azuis acinzentados que eu tanto amava e que tantas vezes me infundira calma e confiança enquanto respondia:
Não. Não veria.
Aceitei o que ele disse. É, talvez não visse mesmo, pensei.
Preciso conversar com sua mãe. Fique estudando.
Saiu fechando a porta e tive certeza que algo sério ele queria dizer. Parecia triste e naquela hora eu não me lembrei que Cláudio fizera vários exames. Era muito garota e até aquele momento nada poderia imaginar de catastrófico.
Ouvi então o barulho de uma voz lamentosa que parecia de minha mãe dizendo:
Não pode ser. Não pode ser.
Quando cheguei na sala ela chorava muito abraçada ao médico e meu pai procurava se conter, visivelmente chocado.
E só muito depois eles me viram e compreenderam que eu estava lá há bastante tempo.
Estava aí, Vânia?
Não respondi porque não conseguia falar.
O médico se afastou delicadamente de minha mãe e caminhou até onde eu estava abraçando-me enquanto eu silenciosamente chorava.
Vamos conversar, disse-me ele.
O que ele tem?
Talvez fique bom.
Talvez? E se não ficar?
Se não ficar, filha muitas coisas poderão acontecer. Mas há um longo caminho. Explicarei tudo a você. Afinal já é uma mocinha.
2ª PARTE
Foi constatado que Cláudio estava com nefrose. Uma doença do rim que paralisa o órgão fazendo com que a absorção da água seja completa. E naquela época não havia transplante e hemodiálise. Era fatal em quase todos os casos e dolorosa a evolução. Degenerativa. Tinha três médicos que se revezavam continuamente, um deles nefrologista. Homem excepcional a quem muito me afeiçoei. Mas aquele que estava em todas as horas lá era o meu querido Dr. Odilon. As crises eram grandes e as dores imensas e meu irmão passou um ano e meio nesse tormento, mas não vou me estender sobre minúcias desse mal terrível.
Cláudio como já disse era muito ligado a mim e eu ficava horas intermináveis no seu quarto, brincando, conversando, ouvindo música, e meus pais em certas horas me obrigavam a sair de perto dele. Eu tinha que estudar e muito (o colégio exigia demais) e as outras aulas também. Muitas vezes à noite ele tinha crises de dores. E eu desesperada deitada e querendo estar a seu lado, punha as mãos nos ouvidos para não escutar o desespero contra o qual era impotente.
Dr. Odilon, nessas horas ia ao meu quarto para fazer com que eu saísse um pouco daquele martírio. Pedia que eu me levantasse e me levava para dar uma volta de carro pela avenida Atlântica enquanto conversava e procurava me acalmar. Nunca esquecerei, por mais que o tempo passe do som de sua voz extremamente amiga tentando inutilmente fazer-me compreender que a vida não era só composta de tristezas. Eu já não estava acreditando. A única coisa que me aliviava era realmente conversar com ele e escrever. Recordando, lembro-me de quanto me valeram meus desabafos escritos.
Minha dor maior era saber a intensidade do sofrimento de meu irmão e sentir a lenta amargura de meus pais. Muitas vezes Cláudio e eu tínhamos longos papos. Ele costumava se olhar no espelho e via o quanto estava inchado.
Um dia me perguntou
Eu era bonito, não era, Vânia?
Você é bonito!
Não, não sou. Por que? Por que eu fiquei assim?
É só durante algum tempo, Claudinho.
Eu vou morrer?
É claro que não. Não vê que os médicos estão cuidando disso?
Vânia eu queria ir para o colégio.
Não poderá ser agora. Quem sabe o ano que vem você já poderá estar lá?
Ele olhava para mim desconsolado e eu queria morrer naquele momento. Minha vontade era morrer e eu me perguntava: Por que? Não sabia mais o que responder ao meu irmãozinho o que dizer. Eu não poderia me responder. Quem me responderia?
Lembro-me que muitas vezes as freiras ou professoras do colégio me encontravam na sala de biologia tentando descobrir onde estava o mal de Cláudio, lendo alguma coisa, procurando em livros. Ou observando os órgãos fictícios expostos na vitrine para estudo. Eu queria uma resposta e também saber que doença era essa.
Várias vezes quando eu fazia inúmeras perguntas ao médico ele me dizia penalizado enquanto me abraçava forte:
Por que você quer saber, filha? Vai adiantar?
Eu não sei sofrer sem compreender.
E quando me olhou seus olhos tão meigos estavam rasos de lágrimas. Nunca agradecerei suficiente a esse homem especial o que ele me ajudou. Não sei o que seria de todos nós sem o seu carinho. Não sei. A mim especialmente ele se dedicava com afinco. Eu era praticamente a única menina entre muitos irmãos e minhas duas irmãs eram muito pequenas (Uma delas tinha poucos meses.). Por isso Cláudio sempre fora muito ligado a mim e eu a ele. Lembro-me que havia duas babás que se revezavam a seu lado, mas na verdade, ele desejava a minha companhia em todas as horas livres. Para ser sincera, embora ficasse muito emocionada gostava de estar sempre com meu irmão. Almoçava muitas vezes a sua comida sem sal e não reclamava simplesmente para satisfazê-lo. Por incrível que possa parecer em várias oportunidades nos surpreendiam dando gargalhadas por histórias mutuamente trocadas. Ou algum programa de televisão. Mesmo que depois chorasse muito. Meus pais sofriam demais e era difícil vê-los assim.
Perguntava-me se Deus era justo e não conseguia uma resposta muito coerente. Nas horas longas das noites mal dormidas, costumava rezar, pedindo a cura quase impossível desse menino tão amado. E até hoje sinto meu rosto arder naquelas lágrimas derramadas.
3ª PARTE
Foi difícil ouvir que Cláudio estava piorando, mas era verdade. Minha mãe nunca aceitou a idéia dele morrer. De jeito nenhum. Naqueles dias ele piorara tanto que passou rapidamente para o coma. O que agradeço a Deus foi o bem-estar que o menino pode ter, pois até oxigênio, aparelhos e cama especializada foram levadas para minha casa e assim ele pode ter o conforto de ficar em seu ambiente e ter sido cercado por médicos competentes já que minha família era composta por muito deles. Era mais fácil providenciar tudo isso.
Recordo-me que uma vez enquanto meu irmão estava nos últimos dias, eu ficava com remorso de brincar sabendo seu estado. A professora acercou-se de mim, perguntando:
Por que não vai se divertir um pouco um pouco, Vânia?
Minhas amigas tinham vindo me chamar.
Acho que não devo. Ele está sofrendo
E você acha que isso não é certo? Você precisa se recuperar. Só o conseguirá tentando viver a sua idade, minha querida. Vá brincar.
Nesse dia quando cheguei em casa ele havia piorado ainda mais. Chorei desesperadamente enquanto Dr. Odilon procurava me fazer compreender que tudo fora uma coincidência. E então minha mãe aproximou-se de mim:
Minha filha, nós nunca aceitamos a idéia dele morrer, não é verdade?
Balancei a cabeça afirmativamente:
Mas se ele morrer devemos aceitar.
Ele não vai morrer.
Mas se isso acontecer, deveremos nos conformar. Está pensando apenas em você? Talvez Deus ache que seja o seu descanso. Devemos estar preparados.
Não dava para falar. A dor era grande demais. Era demasiado ainda ter que dizer alguma coisa.
Assisti todos os minutos do seu fim. Não abri mão disso mesmo com a ordem severa do Dr. Odilon:
Fique ali, Vânia, perto de sua mãe. Ela precisa de você.
Desculpe. Vou ficar aqui.
Minha filha, ele está morrendo.
Eu sei. Vou ficar com ele. Até o final.
Abraçado comigo compreendeu que não adiantaria insistir. Não contarei a dor. Nem poderia. Ultrapassa qualquer cena que pudesse descrever. Não é descritível. Não é humana. Nem consolável. O coração dói como se fosse ferida. Dizem que o coração só se manifesta no enfarto ou na angina. Não é verdade. Dói no sofrimento, na saudade, na tristeza e é uma dor quase insuportável. Desumana.
Vi tudo até seu último momento entre meu pai e Dr. Odilon. E jamais esquecerei, nem que eu viva duzentos anos a imagem que está fixada na minha memória nítida, profunda e marcante. Sem palavras.
CONCLUSÃO
Não compareci ao enterro por razões óbvias e por proibição do médico e dos meus pais. Meu pai resolveu que todos sairíamos durante algum tempo da casa, mas as empregadas ficariam mantendo o ritmo normal.
Eu iria para casa do meu tio na Rua Raimundo Corrêa, na qual já brincara muito na infância, pois fora de minha avó. Achavam que a presença de meus primos poderia me animar muito. Só que antes, pedi ao Dr. Odilon que me levasse até em casa. Precisava ir lá. Ele prontamente atendeu-me certo que eu queria buscar alguma coisa.
Entrei emocionada e ele perguntou-me
Que quer, aqui, querida?
Vou lhe pedir um favor.
Quem poderia negar-lhe qualquer coisa? Muito menos eu. Diga. Não quer ir para casa do seu tio? Quer ficar lá em casa?
Não é isso. Quero que o senhor me espere aqui embaixo. Vou ter que subir até meu quarto. Demorarei um pouquinho.
Ele assustou-se.
E por que, Vânia? Que vai fazer?
As lágrimas caiam abundantemente quando respondi:
Escrever… Eu preciso. Sem isso não vou conseguir ir para lugar nenhum.
Muito delicadamente, ele segurou meu rosto entre as mãos, olhou-me daquele jeito que só ele sabia, transbordante de carinho, amor e preocupação e respondeu-me:
Vá, minha filha, Escreva. Eu esperarei o tempo que for necessário. Ficarei no escritório de seu pai. Se precisar de alguma coisa, grite.
Não precisarei. Só de papel e caneta.
Lentamente encaminhei-me para a escada, e sentia urgência de chegar. Antes resolvi entrar no quarto de meu irmãozinho, cercado de tantos brinquedos e jogos modernos que meu pai comprava todos os dias para ele e entendi que nada, nada mesmo compensava sentimento e ternura e ultrapassaria nossa humana ineficácia.
E que nada seria importante se não houvesse amor. Amor em todos os sentidos. Amor humano em geral. Muitas vezes a vida me confirmaria isso.
Chorando muito, entrei no meu quarto, sentei-me à minha mesa com um nó imenso na garganta e quando comecei a escrever percebi um ligeiro, quase imperceptível alívio no coração.
Vânia Moreira Diniz
OBS.: O depoimento, os nomes e os Personagens são absolutamente reais.